segunda-feira, 10 de maio de 2010

O menino chamador de nome feio e a gralha "mangadora"



Como a vida é repleta de reminiscências! Esta semana em um momento de reflexão teórica, como que um vislumbre, eu recuperei lá do fundo do meu velho e adorável baú de memórias uma de minhas mais preciosas lembranças.

Lembrei de quando era um “galeguinho besta”, um fogoió como dizia vovô, ainda instalado no sertão pernambucano. Apesar da aparência de anjinho, por volta dos oito anos, ainda mirradinho, com os cabelos que alumiavam a luz do sol, eu era ruim que só o cão, chamador de nome feio. Ai da madrinha daqueles que mexessem comigo; a coitada ganharia uma carroça de adjetivos que a qualificaria de acordo com o tamanho da provocação. Mon Dieu.

Enfim, voltando a minha adorável memória. Lembrei do dia ensolarado, assim como era a maioria, fosse inverno ou verão, naquele lugar singelo que eu crescia, que eu acordei e fui assistir ao dominical programa de pesca, junto com papai, na nossa televisão em preto e branco.

Em um determinado momento, entrou pela porta, que estava aberta para amenizar o calor, um passarinho voando como se fugisse de algo. Voou por toda a sala e de repente sentou em um dos quadros que estavam pendurados na parede. O passarinho era um bem-te-vi. O quadro que o passarinho sentara era uma fotografia de papai, todo bonitão, quando tinha a idade que tenho hoje. Todo de terno, todo nos trinques, querendo ser as pregas, como dizemos em Pernambuco. Achava meu pai tão bonito naquela foto que queria crescer logo para ser igual ele, para vestir um terno e ficar todo bonito também. Todo importante.

Fiquei impressionado com isso e mostrei a papai o passarinho, correndo para pegar minha baladeira para matá-lo (não disse, eu era o cão em pessoa). Vendo o que eu fazia meu pai riu e disse:

- Não mate ele não. Mamãe dizia que quando isso acontece é porque tem sorte chegando. Ela dizia ainda que quando um passarinho acerta agente com sua arte é dinheiro na certa.

Fiquei pensando o que seria a arte de um passarinho. Tinha a mente fértil, mais do que hoje. Pensei: oxente, coitado de papai está caducando tão novo, onde já se viu um passarinho artista? Após conversar com tia Geró eu entendi o que ele quis dizer e pensei: vichi Maria como eu sou ruim, sempre tentei matar com minha baladeira de liga preta, que ficava sempre no meu pescoço, os que já me acertaram com sua arte e quando não conseguia virava a peste. O domingo terminou e a semana seguiu.

Acho que nessa época eu estava na segunda ou terceira série. Estudava em um grupo escolar, escondido dentro do mato e todo dia íamos, meus primos e eu, pela estrada correndo, rindo até chegar ao local da aula. Nesta mesma semana que o passarinho entrou em casa, ao voltarmos da escola achamos um ninho de vim-vim no oco de uma estaca. Meu primo Duca me disse: minha mãe disse que quando um vim-vim aparece e fica cantando é porque alguém vai morrer, é alguma coisa ruim.

Fiquei impressionado de novo. Como eu me impressionava fácil. Como um passarinho tão bonitinho poderia anunciar uma coisa tão triste: a morte. Retruquei:

- Pois papai me contou que quando um passarinho senta na foto da gente é que muita sorte nos aguarda. (e acrescentei) E se ele caga na nossa cabeça enquanto estamos distraídos é porque a gente vai ganhar muito dinheiro.

A partir daí disputávamos quem era o melhor alvo dos passarinhos. Era uma felicidade só quando um azulão acertava sua arte bem no meio da nossa cabeça enquanto catávamos algarobas para dar aos bezerros. Quando isso me acontecia saía correndo feliz da vida: eu vou ser rico, eu vou ser rico, olha só o tamanho dessa. Eu achava que quanto maior fosse o estrago maior seria a minha riqueza. Nem me importava com o cheiro, nem me importava com a meleca que ficava no meu cabelo.

Foi exatamente deste episódio que lembrei no derradeiro encontro do GEGe (o maravilhoso grupo de estudos que participo na UFSCar) na sexta de manhã enquanto discutíamos coisas interessantes embaixo do pé de castanholas. Em círculo cada um tinha uns minutos para falar aquilo que tinha lido na semana ou para colocar sua perspectiva do texto que havíamos lido. O círculo rodava feito um ventilador. Cada falar era o que dava mais força àquele movimento bom.

Quando chegou a minha vez de falar. Quando fiz menção de abrir a boca. Placccc! Foi certeiro, bem na manga da minha camiseta. Pelo canto eu vi logo que era uma gralha. Porém pegou só de raspão, só uma parte daquele negócio verde me acertou. Neste exato momento passou um filme em minha cabeça e lembrei de como em outrora eu ficava feliz quando isso acontecia. Naquele momento voltei a ser a criança que era antes daquele domingo e em minha mente disparei nomes daqueles que chamava quando pequeno.

- Filha d’uma quenga das costas quebradas. Rapariga da peste. Miserável. Vai cagar na tua madrinha bixiguenta. (acreditem eu chamava esses nomes quando criança).

Porém não externalizei esse pensamento em nenhuma substância dos signos (Bakhtin apud Turatti, só para dar um fundamentozinho científico para este texto). Lembrei também que semana passada tinha sido a vez de outro colega. Infelizmente não tenho a discrição de Kuiava para fingir que nada tinha acontecido. E justamente pela minha indiscrição, pela minha cara, acho que, todo mundo percebeu.

Pensei: coitado desse passarinho se eu estivesse com minha baladeira aqui. Não fiquei muito bravo porque não sujou muito, pois não estava muito mole, e pelo menos o episódio fez o grupo rir. Então dei continuidade a minha fala. O círculo girou e na vez da fala de Pedro. Quando Miotello passou a fala para ele eu senti de novo. Placcc. Era uma porção maior, mas desta vez achei que a melhor alternativa seria seguir o exemplo de Kuiava e ficar quietinho, até porque era a hora do intervalo. Sem demonstrar o menor sinal de que havia acontecido de novo, fiquei parado, fiz cara de paisagem e continuei balançando a cabeça: tipo o que a gente faz na aula quando não está entendendo nada e quer enganar o professor. Após o intervalo eu voltei e troquei de lugar com Ana pensando que seria muito azar ou sorte se uma besta fera voadora me acertasse de novo.

Pedro começou a falar. Durante uma parte de sua fala eu só pensava: passarinho da peste. Minha camiseta azul agora estava com duas manchas. Porém esqueci do passarinho e tentei me concentrar nas falas, até porque Miotello às vezes olhava para mim e eu tinha impressão que ele lia meus pensamentos, e aí eu balançava a cabeça concordando com a fala, fosse qual fosse. Enfim, consegui novamente me concentrar de verdade.

Continuaram as provocações na roda. A fala de Pedro, seguido da de Cristine, suscitaram algumas reflexões na minha cabeça. Ia novamente falar da experiência que tive num trabalho que participei com a professora Maria Silvia, sobre a oficina de produção textual que desenvolvemos numa escola da rede pública de São Carlos, porém no exato momento em que respirei para tal. Placccccccccccccccccccccccccccc!!!!!

Desta vez foi certeiro e grande. Mole e nojento. Camila que estava sentada do meu lado até se assustou.

- Mon Dieu, je ne crois pas, n’est pas possible. C´est la troisième fois.

Para que tudo aquilo? Três vezes, TRÊS!!! Rapidamente pensei de novo: mas eu já estou rico, já ganhei a bolsa FAPESP. Desta vez eu não desejei ter minha velha baladeira, mas uma espingarda para derrubar aquela gralha maldita numa tacada só. E ela lá do alto parecia dar risada da minha cara. Mangava de mim em alto e bons pios. Parecia dizer entre gargalhadas: da outra vez não acertei tudo, mas agora você se lascou Pajeú. E o pior não contente trouxe o companheiro. Eu teria matado os dois.

Não falei o que estava pensando. Enquanto Camila me ajudava a limpar o estrago, que era grande, pois havia sujado um terceiro lugar da minha camiseta mais uma parte enorme de minha calça, eu xingava em pensamento os dois passarinhos que, escondidos entre folhas e galhos, continuavam a mangar de mim. Por um momento pensei: talvez eu fosse falar algo da mesma espécie daquilo que a gralha (quenga) tinha lançado sobre mim, talvez tenha sido um sinal para eu parar. Será que meus pensamentos atraem esse tipo de coisa por eles serem parecidos com essa coisa? Porque duas vezes quando eu ia falar isso aconteceu. Na primeira vez até insisti no pensamento, mas na segunda eu desisti, talvez fosse falar bosta mesmo e estragar as belas reflexões que vinham sendo tecidas. Por isso desisti de falar.

Por fim pensei, ainda bem que não era um vim-vim, já pensou um vim-vim cantando e cagando na minha cabeça, eu poderia interpretar isso como um sinal de que a morte me abraçaria em breve e eu iria direto para o inferno sem desfrutar de minha riqueza, sem gastar nem a reserva técnica da minha bolsa. Deus me livre! Depois disto até fiquei aliviado e me dei conta de que aquilo não era de todo mal. Ainda bem que não era um dos urubus que ronda os prédios do CECH e da Psicologia. Já pensou? Seria sorte pra ganhar na mega-sena acumulada.

Percebi como eu era terrível quando criança e como somos perversos. Eu quis matar de novo o pobre passarinho só porque ele cagou em mim TRÊS VEZES. Coitado, talvez tivesse me avisando que irei ganhar na loteria, pelo menos a quadra da mega-sena, pelo tamanho da titica. Porém se era isso ele se enganou porque eu nem joguei essa semana. Talvez até jogue depois deste ocorrido, quem sabe a superstição que papai me contara não está rondando a minha vida?

Fiquei feliz por uma coisa; ao perceber como minhas memórias são preciosas. Até senti saudade de ser um galeguinho chamador de nome feio. Senti saudade de casa, de papai, e até de vovô que às vezes me dava uns croques. Desejei não perder nunca esse menino besta que mora dentro de mim, aquele severininho dos cabelos de ouro que um dia fui e que ainda me dá acabamento. E cheguei a conclusão que sexta que vem se aquela gralha voltar a fazer isso... Tomara que ela não volte porque senão... senão.. senão (respiro fundo)... eu vou ter que levar um guarda-chuva para as reuniões do GEGe.

2 comentários:

  1. Hélio!!!
    Tudo bem?
    De novo me diverti demais com a sua crônica...o Julio tá la na sala me perguntando o motivo das minhas gargalhadas!!!
    Mas são irresistíveis!!!
    Sugiro que vc se dedique, quem sabe vc não se torna um cronista famoso e rico...olha a gralha!!
    Mas desde quando a gente perambulava lá pelos becos do Largo 13, quando éramos surpreendidos pelas aves com intestino solto...a gente tb se lembrava dessa superstição estranha.
    Muitas saudades!!
    Bjos

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  2. Helinho, que relato mais saboroso (é, eu sei, usar esse termo no comentário de um texto que descreve cagadas de passarinho é estranhíssimo)!!
    Então quer dizer que tem bolsa Fapesp, é? Que coisa mais chique, parabéns!
    Beijo!

    Deborah

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